Um
dia dona Gramática resolveu dar uma grande festa. Queria reunir todos os
membros da Língua Portuguesa. Convite feito, convite aceito. No dia marcado
foram chegando os componentes da Fonética, da Morfologia, da Semântica, da
Sintaxe e da Estilística e já foram formando seus grupos. Todos vestidos a
caráter. Dona Gramática estava feliz com o evento. Como é bom ver os filhos
reunidos em concordância.
O
baile estava animadíssimo. O Ditongo dançava com a Divisão Silábica muito
disputada pelo Tritongo e pelo Hiato. O Radical conversava com a Raiz enquanto
observavam o animado jogo de palavras entre o Sinônimo e o Antônimo. A
Conjunção, que havia bebido um pouco, não sabia se era coordenativa ou
subordinativa, foi preciso a intervenção da Interjeição para acabar com a
dúvida. O grupo das Vogais desafiava o das Consoantes.
O
Substantivo estava numa dura queda de braço com Adjetivo, tudo num clima de
amizade. O Artigo Masculino namorava, lá no cantinho escuro, com o Artigo
Feminino que determina a palavra Felicidade para que ela seja eterna. A
Derivação batia um papo com a Composição. Falavam das suas formações. A
Derivação se acha importante porque é formada por sufixação, prefixação,
parassíntese e derivação regressiva. A Composição também tem seu orgulho ora ela
é justaposta, ora é aglutinada. A Oração Sem Sujeito fofocava com Oração
Reduzida, o Objeto Direto deu uma rasteira no Agente da Passiva e saiu com a
Regência Nominal em clima de Prosódia e Ortoépia. A Onomatopeia rodopiava pelo
salão. O Eufemismo tentava suavizar as palavras para dizer à Hipérbole o quanto
ela dança mal. O Pleonasmo dizia à Antítese que só acreditava naquela festa
porque estava vendo com “seus próprios olhos”. A Reticência dava uma de
cantora, mas era tão desafinada que o Cacófato veio correndo para calar “a boca
dela”.
Lá
pelas tantas, a Gramática ouviu um rumor parecido com uma discussão. Correu
para o canto de onde vinha o alarido e chegou a tempo de ver e ouvir o Verbo
gritando:
-
Eu vou falar, eu quero falar.
A
Gramática interferiu.
-
Meu filho qual é o problema?
Nesse
momento já havia parado a música e todos estavam aglomerados em torno da
Gramática e do Verbo.
-
Desde que eu cheguei nesta festa que ouço vocês contando vantagem. Um é isso,
outro é aquilo. Porque um é melhor e o outro pior. Droga! Nós somos uma
família. Pertencemos ao mesmo idioma, sendo assim um não pode ser melhor que o
outro. Nenhum brilha mais que o outro.
Foi
nesse momento que o Verbo Auxiliar aplaudiu:
-
Bravo companheiro. É isso aí. Onde já se viu uma coisa dessas. Já pensou se
cada elemento de um idioma começasse a dizer que é o tal? Seria uma Babel.
Todos
ficaram calados. E o Verbo, muito nervoso, continuou a falar com sua potente
voz:
-
Senhores, nós somos um exército composto por soldados talhados na forma de
palavras. Lutamos numa guerra eterna para não perder a nossa identidade, para
não deixar o invasor nos assimilar e implantar o seu idioma. Apesar da nossa
vigilância vem a infame influência e planta uma palavrinha aqui, outra ali e
quando abrirmos os olhos já não haverá um idioma, somente um dialeto. É preciso
ensinar as crianças, desde cedo, a amar a língua. Como fazer? Ensinando-as a
falar e escrever corretamente.
-
Vejam os erros de concordância nas redações, isso é só uma parte, sem contar a
incompreensão de textos e outras coisas mais. Tudo isso por conta do mau
ensino. E vocês ficam aí discutindo bagatelas.
O
verbo sentou e chorou. Dona Gramática, pensativa, admitia o erro no ensino da
língua.
A
festa que começara animada voltou aos “tempos primitivos” e foi preciso um
“Imperativo” na tentativa de restaurar a alegria. A orquestra de letrinhas, que
parara de tocar, começou a recolher os instrumentos que estavam no chão. E para
que não houvesse mais confusão o Sujeito subiu numa cadeira e gritou.
-
Aí pessoal, vamos agitar porque essa festa não está mais “manera”, parece um
cemitério, pô. Os “manos” vieram aqui dançar e levar um “lero” legal.
-
Vejam que falei gírias, também uso a forma culta, isso foi só para mostrar como
é belo esse idioma que tem palavras para designar qualquer coisa. Procurem por
aí a palavra saudade, ninguém tem, só nós.
Tem mais pessoal, na festa da dona Gramática não há lugar para se
discutir problema de ensino, aqui é o lugar da união de todos para formarmos um
só corpo. Discutir ensino de gramática, isso é lá com “seu” Ministro.
Todos
concordaram e o Sujeito saiu balançando o esqueleto pelo salão à procura de uma
Flexão Adjetiva para um giro numa folha de caderno.
(Histórias que contava para o meu neto)
(Maria Hilda de J. Alão)
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